Tenho um olhar (muito meu) para as crianças e adolescentes de
rua; sempre encontro uma ternura frágil neles, coberta pela couraça da
agressividade, violência e irreverência que usam rotineiramente como
ferramenta de sobrevivência em relação ao abandono, à marginalidade e o
preconceito. Talvez este meu olhar e sentir construiu uma ponte
invisível numa conexão solidária entre nós.
Desta ponte invisível estabelecida, surgiram encontros que pintaram os dias com cores especiais. A primeira cor permitiu-me o
reconhecimento da irmandade humana, possibilitando olhá-los sem medo (eles
detestam sentir olhar de medo da “vítima”; e isto impulsiona a “fera” deles); a
segunda cor é o acolhimento no gesto do encontro: um olhar afetuoso, uma
palavra na partilha e a terceira cor é não julgá-los como demônios, monstros
cruéis que roubam simplesmente.
Quando cursava Psicologia na FAFIRE (considerada melhor faculdade de Psicologia), mesmo situada no ambiente urbano de trânsito intenso e a consequente poluição que não me agradava; por lá transitavam grupos de meninos de rua que quase sempre furtavam os estudantes suprimido-lhes relógios, passe
estudantil e bolsas com todos pertences. As jovens universitárias sempre andavam em grupo; todas
apavoradas. Um dia, saindo da faculdade com um pacote de pipocas na
mão, para pegar o ônibus, ao avistar o grupo que vinha em minha
direção, não tive dúvida: parei e fiquei olhando (no meu olhar não existia
medo) para eles. Ofereci pipocas. Conversamos naturalmente. Após um tempo de conversa, pediram-me dinheiro. Peguei a carteira da bolsa, mesmo tendo dinheiro, optei por dar três passes estudantis a eles, ficando apenas com da minha passagem. Vendo que eu tirei a carteira na frente deles sem demostrar receio, o líder do grupo peguntou:
-Tia, tu não tem medo da gente?
-Não. Mas, se vocês quiserem passo a ter medo (brincando,
fiz que estava tremendo as mãos)...
Todos desabaram numa gargalhada...
-Tá Tia, tu ganhou nosso respeito!
Peguei o ônibus com menos três passes estudantis, mas com o
sabor da gargalhada daqueles meninos. Para mim eram meninos e me recuso a
vê-los simplesmente como marginais.
Esse elo de afeto e respeito permeou sempre os nossos
caminhos, a nossa ponte invisível tinha uma solidez, difícil de encontrar na
materialidade dos contatos comuns, sedimentado no terreno da desconfiança e superficialidade baseada numa gentileza egóica.
Do caminho entre a faculdade e a parada de ônibus, havia um bar fora do horário de funcionamento, avistei o grupo dos meninos em fila perto da entrada da cozinha. Resolvi me
aproximar para saber o que estava acontecendo. Foi quando um deles me disse que
aguardavam o cozinheiro que oferecia um lanche para eles, toda quinta-feira. Havia um adolescente que eu nunca tinha visto no grupo. Ele me olhou com a cara bem feia:
-Moça! Não queremos
saber de conversa, não...
-A Tia é gente boa, não fala assim com ela! - disse o líder do
grupo
-Olha, ficando bonzinho com todo mundo, a gente deixa de ser
respeitado, e como a gente vai viver?
-A Tia respeita a gente de outro jeito...
Eu me afastei com emoção, ecoando em mim a sublimidade da frase: “A Tia
respeita a gente de outro jeito”...
Lembro de uma amiga traumatizada. Dela tinham sido furtados
vários relógios e bolsa com o ônibus em movimento. Por tais motivos, ela me confessou que
tinha pavor dos meninos de rua. À medida que ficamos mais amigas, procurei aproximá-la
deles. Daí passamos a compartilhar este novo olhar e conviver passeando pela ponte
invisível da amizade solidária... Deixávamos de lanchar na cantina da faculdade, que tinha o preço mais caro, fazíamos o lanche na carrocinha de frente à
faculdade e assim podíamos pagar o lanche dos meninos e conversar um pouco com
eles. Uma vez por semana tínhamos também aula à noite. Aconteceu algo lindo com
a minha amiga, ela teve que andar naquele dia por um percurso perigoso até
chegar à faculdade. Foi quando ela me contou que tinha vindo com o grupo dos
meninos acompanhando os seus passos, como anjos protegendo-a e, ela emocionada,
me abraçou agradecendo por ter ajudado a construir um olhar de irmandade
(aceitação) para com os meninos, estes com asas guardadas para a hora
essencial!...
Após muitos anos da minha formatura, estava eu de volta
do almoço para atravessar duas pistas com canteiro. Pistas de muito movimento e
de frente para o prédio do meu consultório.
De repete uma senhora se aproximou de mim, muito assustada.
Estava tão nervosa que tinha dificuldade de falar, a princípio pensei que ela
estivesse passando mal ou com medo de atravessar as pistas. Procurei
tranquilizá-la, oferecendo a minha ajuda e foi quando percebi que ela apontava
para direção de alguém. Quando eu olhei, era um menino de rua, bem magro e alto
e tinha na mão um canivete. Simplesmente disse para ela que ficasse calma e que
eu ia resolver. Ela, com uma cara de espanto, argumentou que eu não teria força
física para nos defender. Eu recomendei que ela ficasse ali e dei alguns passos
a frente ao encontro do menino (adolescente). Lembrei-me de imediato da ponte
invisível, pintando a tela daquele instante com as três cores. Depois de alguns
minutos de conversa com ele, permeada pelo o meu olhar que abraça; dissolvendo
qualquer ameaça, eu verbalizo:
- Você está com fome? Eu estou sem bolsa, mas posso pagar um
lanche naquela lanchonete daquele prédio, se quiser?
- Legal Tia! Acabei de encher o bucho numa padaria, uma
mulher pagou pra eu (dando uma batidinha na barriga)...
- Qual a necessidade dessa arma (canivete)?
- Não vou te machucar, Tia! A lida na rua é perigo pra todo
lado, neguinho não pode ficar sem canivete...
- Imagino como deve ser difícil... E sua família, Mãe?
- Depois que Pai abandonou a gente, Mãe arrumou um homem pior
do que ele e nisso fugi de casa, passo uns dias na casa da minha avó e assim
vai...
- E a escola?
- Ah! Tia, é pergunta demais... Vou me bora!
- Ok. Gostei muito de conversar com você! Apenas queria te
ajudar...
Peguei na mão dele e desejei paz. Encontrei ternura no seu
olhar com um sorriso tímido, me deu uma resposta bem humorada.
- Tia dá um pouco dessa paz pra véia, ela não para de tremer,
eu não sou o demônio não, véia!
- Tchau, Tia! Tu é legal!
Rapidamente sumiu na ponte invisível, cruzando as esquinas e
se perdendo na margem de um destino tão cruel. Na fila enorme da desigualdade
social...
Peguei na mão da senhora para atravessar as pistas,
acomodando-a num táxi. Ela me agradeceu muito, dizendo que jamais esqueceria aquele
dia...
Eu fiquei com um profundo incomodo: O de ver a vida daquele menino de
dias vestidos de ternura frágil, ser e ter uma arma apontada, impossibilitando seus sonhos!...
Suzete Brainer (Direitos autorais registrados)
Imagem: Obra de Alexei Antonov.